04 abril, 2009

O menino vestido de pantera


Muito mais do que um craque, pele cor de pantera, estilo de quem joga à bola a lembrar performance de kizomba numa quadra de jogo. Dançava com a redondinha como quem agarra o seu par e o protege, indicando o natural movimento de quem sabe o que quer. Mário tem idade de menino mas a sapiência dos homens cultos com a bola nos pés, os olhos são adereços, ele não precisa deles para colocar o esférico em diagonais microscópicas, os pés são varinhas mágicas ou batutas de maestro transformando um desafio de futebol numa obra de arte clássica, ao ritmo de quem comanda, ao som de quem é embalado pelos acordes do artista. Como se tratasse a bola como um pincel e pintasse um quadro feito de magia, com cores de génio e formas de predestinado. Mais do que um quadro pintado era um museu escancarado aos olhos de cada um, porque a arte deve ser apreciada pelo olhar comum e Mário trazia-nos os traços refinados e os gestos dotados de borla, bastava entrar no pavilhão e vê-lo jogar como quem escreve um poema com o peito do pé. Abria assim o livro, o kama chuta, tal era a diversidade de posições na arte de tratar a bola, folheava-o com fintas e lia cada jogada transformadas num capítulo de mestria. Parecia cinema, deveriam usar duplos nos treinos para proteger tamanho actor para os jogos a sério. Menino angolano, rijo como as raízes do seu povo, baixo como o artista que trata a bola por tu deve ser. Mário é tímido na argumentação frontal mas são muitos os que o veneram sem lhe falar, pois para quê conhecer o homem para além de tamanho dom? Bom, é um dom sem tamanho dada a velocidade da técnica e a invisibilidade do pormenor, não é possível medir a classe, mas é verdade que se pode pesar: talvez 50 kg de gente. O que deus lhe deu para tornar um mundo melhor estava ali à vista de cada um. É líder dentro do campo pelo que não fala e pelo que corre, aliás, é a bola que corre para junto dele pedindo-lhe protecção, implorando-lhe mimos como quem faz festas ao seu animal de estimação.
Transporta o 10 nas costas e tem marcado o símbolo do glorioso no peito. Sempre equipado a rigor, vermelho e branco são as cores do sonho a alcançar e o símbolo da águia traz nas asas a vontade de lá chegar. O clube do Eusébio estava-lhe esculpido nas garras e gravado no coração, e tão estranho que era pertencer assim a um clube que ganhava tão pouco durante a sua vivência de menino e ainda mais original se tratava porque eram assim grande parte dos meninos. Como se separassem das conquistas e das vitórias e conseguissem o discernimento para ver no glorioso algo muito mais do que um clube. No Benfica não se joga só para ganhar jogos, joga-se para vencer desafios e um desafio está para além de um resultado de um jogo. Mário perdia vários jogos, mas que classe na hora da derrota, cabeça levantada, camiseta suada e corpo esgotado. Ao cumprimento final do árbitro sorria, com um sorriso envergonhado, confessando uma timidez ao adversário, como lhe dizendo desculpa lá ganhaste mas não venceste. Que estranho era o menino perder um jogo e ser o mais aplaudido, fora ou em casa, porque classe não tem morada, desculpem lá a maçada de terem ganho mas a ousadia de eu ter sabido jogar para vencer.
Mário já prestara provas na casa do glorioso durante uns tempos e a cada treino todos se maravilhavam com o garoto. O certo é que não ficou, o certo é que o sonho se foi adiando. Meninos do centro do país, longe de Lisboa e do Porto e com qualidade para a bola tinham o dobro das dificuldades para se revelarem. Mas ele não tinha residência como já disse, encantava o mais perfeccionista dos observadores e o mais rigoroso dos treinadores. O menino pantera era fora de série na Europa, em África ou na Cochinchina, mas o certo é que ficou não ficando... Os clubes do coração fazem, muitas vezes, uma chantagem emocional inconsciente, pois vão adiando uma aposta que pensam que se tornará uma certeza, mais cedo ou mais tarde. Perante tal pedra preciosa e na presença tão imensa de um amor pelo glorioso esqueceram-se que a idade não pára e que a aposta passa a ser uma necessidade. Ironia das ironias, levaram-no ao clube rival da segunda circular e num piscar de olhos marcaram-lhe lugar na tão proclamada academia. Um mês intensivo a mostrar-se a quem o não conhecia e a evidenciar-se perante tantos outros supostos predestinados. A quem o conhece, como eu, ficou um cocktail de emoções. Feliz porque está mais perto de uma vida melhor, orgulhoso por acreditar que um dia vai chegar lá e fazer as expressões faciais corarem de admiração... Mas existe um vazio enorme, uma realidade tão oca, pode lá ser, aquele menino veio ao mundo para ser do clube dos milhões, para alcançar o sonho dele e permitir com que esses milhões sonhem cada vez mais alto. O menino está mais perto do estrelato mas ficou mais longe do nosso sonho. Assim o sonho saiba correr para ele como corre a bola que lhe pede carinhos, porque quem a trata assim deveria ter lugar marcado no clube do Eusébio...

Afonsus, CD

2 comentários:

  1. Escrever assim sobre futebol até dá gosto ler...
    Como sempre te disse, tu tens um dom.. Tu, dominas as palavras com a mestria de quem as conhece e as trata por tu.

    Num futuro não muito longínquo, espero estar a ler um livro teu. A sério.

    Beijos, Beta

    ResponderEliminar
  2. Fantástico!!!

    É um orgulho ler estas tuas palavras cheias de mestria e de simbolismo com que expressas o amor que sentes pelo nosso clube: BENFICA.

    Continua a escrever, pois fazes-lo com grande sabedoria e paixão. Vou ficar atento.

    Um abraço Glorioso,
    Luís Dias

    ResponderEliminar